sábado, 18 de agosto de 2012


JESUS CRISTO E A LITERATURA, SEGUNDO OSCAR WILDE.

Por: Belinha (autora do blog)

Ler um romance não exige um grande volume de conhecimentos e dotes intelectuais, mas reclama uma forma especial de receptividade, que é a capacidade de entrega, de envolvimento, assombro, maravilhamento. Oscar Wilde, em De profundis e Balada do Cárcere de Reading, via em Jesus Cristo, menos a figura religiosa da teologia e do Cristianismo, e muito mais o ser sensível capaz de tocar as pessoas em cada gesto ou palavra que produzia; por isso não teve dúvidas em afirmar que Cristo “se localiza ao lado dos poetas”. Para ele, “Mais do que qualquer outra pessoa na história, ele desperta em nós aquela capacidade de nos maravilhar para a qual o romance sempre recorre”.  Sófocles e Shelley seriam companheiros de Cristo. E a vida de Jesus, em seu dizer, “o mais maravilhoso poema”. Isso porque, segundo ele, nem a tragédia grega, com seu espetáculo de piedade e terror, alcançou mais dramaticidade que a vida de Cristo. Da mesma forma, na arte romântica, nunca se viu um personagem com tamanha pureza e elevação.  Avalia que no palco da vida do messias, sua Paixão desperta a “simpatia do pathos”, que nem mesmo Dante, Shakespeare ou Ésquilo, nem o conjunto de lendas e mitos celtas conseguiram concorrer. Na vida do messias judeu, dor e beleza fundiram-se em só um elemento.  Ele é o amante que amou em excesso e fez da submissão e da agonia uma inusitada declaração de amor.
Como o poeta procura o inatingível da expressão, Cristo buscava um bem difícil de alcançar: a alma do homem, essa criatura tão volúvel. O poeta, embora de forma diversa, visa a alma humana também, e Cristo foi um poeta que desempenhou seus versos na própria carne. Não foi visualmente idílica e bela sua manifestação de afeto: foi contundente, sangrenta, arrebatadora. Mas não é isso que se espera da arte? Que provoque, enlace, choque, provoque derramamento?
Concordo com Wilde lembrando uma frase do mestre: “Vende tudo que tens e dá-os aos pobres”. Ora, não é mais ou menos isso que acontece na relação leitor-autor?  O leitor precisa sair de si, para aceitar o pacto de leitura e “viver” momentaneamente cada palavra lida. O autor concebe a obra nas mesmas condições: despe-se do caráter descartável da cultura adquirida, para fazer emergir seu fluxo criativo.

Jesus prescrevia que o homem deveria ampliar as fronteiras de sua individualidade, passando a se importar com o próximo. Wilde explica: “Ele deu ao homem uma personalidade ampla, titânica. Desde tua vinda, a história de cada indivíduo é, ou pode tornar-se, a história do mundo”.  Ora, não existe arte sem pluralidade, sem colocar-se no lugar do outro. Para Wilde, “ a arte fez de nós espíritos miríades”.  

Um artista precisa de muita imaginação. Cristo era um visionário de imaginação sem limites: não via distinção entre pessoas, classe e sexo. Para Oscar Wilde, ele via o ser humano da mesma forma que o panteísta vê Deus.
“Ele foi o primeiro a conceber as raças divididas como uma unidade. Antes do seu tempo, tinha havido deuses e homens. Só ele entendeu, que nas montanhas da vida, só havia Deus e Homem (...)”, ressalta Wilde.

Cristo mudou a relação humana com a divindade. Quebrou a distância dessa relação e lutou contra os preconceitos religiosos de sua época. Comparo isso à postura iconoclasta do artista. Romper as tradições literárias significa, de início, ser incompreendido pelo público, pela crítica e carregar por anos um legado com falsos estereótipos. Cristo fez rupturas de pensamentos e também foi incompreendido por isso. Os judeus esperavam a vinda de um Rei beligerante e altaneiro e se defrontaram com alguém que dizia coisas singelas, como, “olhai os lírios dos campos”. Aliás, não conheço frase mais poética do que essa. Como poeta, Cristo manifestava  sua forte ligação com a natureza, ao mesmo tempo em que afastava de si o dogmatismo farisaico, pois em vez de prescrever áridos roteiros de orações e jejuns aos seguidores, ensinava outro caminho para alcançar a plenitude e o desprendimento: “Olhai os lírios dos campos”.
A psicologia de Cristo é a de um poeta. Ele não queria mudar politicamente o mundo de sua época. Aquele não era o momento. Aceitava o governo dos homens. A literatura, como se sabe, também não toma o espaço das leis, não muda a realidade. Ela se constitui uma forma de responder à sede de entendimento da alma humana e de contemplação do belo. Mas dificilmente muda as estruturas da realidade imediata.

Assim como o artista sonha com a perfeição de sua obra, Cristo sonhava com um mundo e uma humanidade sem imperfeições. Como um artista cego pela maestria de sua criação, estava disposto a alcançar isso mesmo que precisasse oferecer a si mesmo como o sacrifício.
As aproximações de Cristo com o pensamento artístico ou literário não se esgotam por aqui. Cristo não veio como um repressor de condutas, mas um como amante apaixonado capaz de extremos por sua noiva. Foi rejeitado por ela, assim como um eu poético rejeitado pela amada. Sofreu por um amor não correspondido, como um poeta chora em versos por ser desprezado pelo amor de sua vida.  Até sua solidão monumental no Gólgota atesta a postura poética de seu drama.

A verdadeira poesia não escapa de retratar paradoxos, pois a vida humana é repleta de contrastes. A personalidade de Cristo também revela dualismos, pois é um misto de doçura e agressividade.  O mesmo Jesus que pegou ao colo criancinhas, expulsou e chicoteou os vendilhões do templo.
O Filho do Homem não falava para agradar as autoridades, nem mesmo para conquistar amigos. Na vida artística, tentar agradar a gregos e troianos significa abrir mão da autenticidade da obra. As comparações estendem-se à farta. Não é à toa que Oscar Wilde enuncia:

“Vejo uma vinculação bem mais íntima e próxima entre a verdadeira vida de Cristo e a verdadeira vida do artista”. Sim, Wilde, Cristo participou da natureza humana e, da mesma forma, a natureza humana também participa a natureza divina. O homem, com sua natureza tão dividida entre o divino e o animal, ornamenta-se de beleza quando desperta para o há que de sensível dentro de em si, ou segundo os religiosos, quando “conhece a Cristo”.

  
Autoria do texto: Belinha.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Ensaio sobre o conto "O enfermeiro", de Machado de Assis

O enfermeiro Procópio conta que teve uma vida cheia de acontecimentos, mas o que mais o marcou deu-se em 1860, quando tornou-se cuidador de um coronel idoso que lheu deu muito trabalho. De bom grado, ele aceita narrar a história para um livro, mas com a condição única que não seja divulgada antes de sua morte, que acredita próxima. Compreende-se a preocupação de Procópio pelo fato de ele narrar em detalhes algo que, se não poderia comprometer sua liberdade, poderia ao menos manchar a boa reputação em que viveu.
O coronel era um osso duro de roer e Procópio não fazia ideia. Quando chega ao novo emprego é que começa a ter notícias do coronel: insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Mas era tarde para voltar para casa e, além disso precisava de dinheiro e acreditava em sua capacidade de “amansar a fera”. Até o vigário recomendou mansidão e cautela, o que prova o aspecto temperamental do velho.
A recepção também não foi nada cordial: o coronel pergunta se Procópio é gatuno e faz pilhéria com o nome dele. Mas o enfermeiro mostra-se gentil, prestativo e, por isso, até ganha elogios do coronel perante o vigário. Mas aquela harmonia, que ele chama de lua de mel, só dura sete dias.
O coronel começa a tratá-lo mal e a ocupar-lhe em demasia. Por causa de uma bengalada, ele decide ir embora, mas o velho, esperto, suplica que fique e Procópio deixa-se vencer pelos rogos. Os insultos continuam e Procópio consegue se fazer de indiferente. Não que fosse mártir, ele bem que tentava sair da função, mas o vigário o demovia de ideia porque o velho não tinha parentes no mundo e estava no fim da vida. Procópio confessa que um fermento de ódio latejava-lhe no coração e apenas esperava uma ocasião propícia para voltar à Corte e esquecer o coronel. Antes que ela surgisse, aconteceu um evento que mudou sua história: a morte do coronel. Ele arremessa uma moringa no enfermeiro enquanto este dormia. Num acesso de fúria, Procópio atira-se contra seu ofensor, luta e consegue esganá-lo. Ao perceber o que acabara de fazer, Procópio se assusta com a própria reação: ele matara o homem a quem deveria cuidar. Tanto desvelo, tanta paciência, mas agora tudo em vão: não conseguira aguentar a última provocação violenta do coronel. O que deveria fazer? Ele fica desnorteado. Sua consciência aturdia, macerava. Essa zoeira na mente é mostrada magnificamente nas passagens: Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava uma vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!
Mas o pungir da consciência foi interrompido por uma preocupação prática e terrível: havia um cadáver em seu poder e teria que explica a todos o que acontecera quando o dia amanhecesse. E agora? Mesmo com receios, Procópio diligencia tudo com cuidado e consegue permanecer insuspeito. O que não consegue é desvencilhar-se da culpa. E por causa dela começa a idealizar o coronel, elogiando-o e rezando missa. Não lhe interessava apenas convencer os homens de sua sinceridade, ao fazer isso, queria convencer a si mesmo. Até receber com susto a notícia de que herdara tudo do coronel. Parecia-lhe hediondo auferir um vintém que fosse do homem que matara. Procópio cogita dar tudo aos pobres, pois caso recusasse, poderia levantar suspeitas. Parecia determinado em seu propósito de benevolência, mas algo acontecia em seu interior. E ele parecia perguntar-se: afinal o que realmente acontecera? Teria realmente culpa no que se passou? Não teria o velho morrido do aneurisma que arrebentara no exato momento da luta? Não iria arrebentar de qualquer maneira naqueles dias? Talvez o momento tivesse apenas coincidido. Assim, a culpa não era dele. O coronel nem viveria muito e padecia de muitas mazelas, a morte até foi uma saída para a vida que levava. Ele racionalizava a situação enquanto convencia-se da própria inocência.  
Sua consciência ganha um presente extra: todos na vila, comentavam sobre a rabugice do coronel e do quanto era insuportável e mau. Procópio ouvia “com prazer” as histórias escabrosas sobre o velho. Eram histórias que não só aliviavam, mas até o redimiam, pois diante daquela personalidade monstruosa, quem aguentaria não esganá-lo?
Os dias foram passando, a ideia de doar tudo aos pobres parecia-lhe “uma afetação”. Procópio salda simbolicamente a dívida com o morto mandando-lhe fazer um túmulo de mármore. O dinheiro que o velho deixara lhe traz um contentamento que suaviza sua vida. Na suavidade dessa nova vida, por que remoer o passado? Assim, ele crê que o dinheiro consola muitos males e solta a frase que encerra seu segredo de vida: “bem-aventurado os que possuem porque serão consolados”.
Nesse conto, Machado de Assis expõe brilhantemente sua capacidade de vasculhar a consciência dos personagens a partir do detalhe. O narrador confessa: Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o. Mas quer convencer o leitor de que não teve alternativa, fez isso apenas pelo ímpeto da legítima defesa. Mostra-se também arrependido, aceitando qualquer penitência:  E Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas por outro lado, não se pode esquecer que Procópio já alimentava o que ele chama de “ fermento de ódio e aversão”. Então até que ponto a reação do enfermeiro foi tão impensada como ele assevera? Quanto tempo teria durado essa luta? Por que Procópio não percebeu que estava matando o velho? Se o coronel era de idade e doente, por que para revidá-lo, teve que lutar? E as vozes e vultos que ameaçaram a consciência de Procópio? Atestariam sua dor pela morte do velho ou apenas a culpa pela vazão enorme que dera ao seu ódio? São perguntas que ficam no ar.
Outro aspecto magistral do conto é a reação interna de Procópio: Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário.  Adentramos na própria consciência do personagem, sabemos que temores o perpassam e cada detalhe que o incomoda. O que para as pessoas em geral é interpretado como a dor que estava sentido, para o leitor é revelado que se trata de insegurança e receio das suspeitas que pudesse levantar.
Mas nada se compara ao processo de racionalização da culpa. Machado mostra como um homem consegue cauterizar a própria a consciência com sucesso. Pequenos atos de bondade, justificavas pessoais, benesses do dinheiro, ação do tempo, tudo isso foi faxinando as lembranças, tornando o passado como algo remoto e sem importância. O conto é ferinamente humano em seus implícitos: tudo consegue o homem superar, apagar, quando lhe convém e o dinheiro vem ajudar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

POEMA AS ÁRVORES DA SERRA, DE AUGUSTO DOS ANJOS

A árvore da serra  

— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
«Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Análise

Nesse poema, pai e filho discutem a respeito do destino de uma árvore: o pai deseja cortá-la, o filho tenta impedi-lo. Mas vamos por partes: no primeiro verso, ao dizer que as árvores não têm alma, o pai argumenta a favor daquilo que pretende fazer: cortar a árvore. Se árvores não possuem alma, ela não sofrerá. Nada saberá, nem sentirá do que lhe fizer. E sendo ela um empecilho, não haveria motivo para poupar-lhe. Não é dito que espécie de empecilho é esse. Estaria a árvore obstruindo a visão de sua janela? Estaria derrubando folhas em excesso? Atrairia insetos indesejáveis? Nada disso parece ser o caso, pois ela carrega um problema maior: a velhice calma daquele pai depende da eliminação dessa árvore. Se sua velhice tranquila está em jogo, todas essas hipóteses aventadas não justificariam a importância capital de destruí-la. Haveria uma razão maior para destruir a árvore, algo não relacionado aos pequenos inconvenientes que uma árvore normalmente pode apresentar. E o problema encontra-se a tal ponto, que não basta eliminar suas folhas, seus galhos, sua copa, ou eventuais frutos, é preciso arrancar a árvore inteira. Sua velhice, reitere-se, não será tranquila sem isso.
Por outro lado, o filho não enxerga nenhum perigo trazido pela árvore e, portanto, indaga ao pai o porquê de não acalmar sua ira. Ao usar o termo “ira”, percebe-se que o pai não está falando ou agindo calmamente, está tomado de fúria, pois ira é uma reação enérgica, portanto desfaz-se a impressão de uma discussão totalmente pacífica. O filho tenta apaziguá-lo: "não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!" O termo "mesmo"dá ideia de que está sendo feita uma comparação. Para o filho, todas as coisas se revestem da mesma importância e possuem a mesma beleza. Ele rejeita a superioridade de um ser a outro. Tanto as coisas humildes, como o junquilho (espécie rústica de capim), como as glamourosas, como o cedro, possuem alma feita por Deus e têm direito de existir. É como se seu pai privilegiasse as coisas mais elevadas, mais orgulhosas, “os cedros” da vida, em detrimento das simplórias. O filho, inconformado e tentando demover o pai de ideia, derrama seu ser: "esta árvore, meu pai, possui minh'alma!" Para ele, a árvore era mais que querida e amada, possuía sua alma. Valia mais que uma joia.
Num ato de desespero, ele se ajoelha, se humilha e lhe suplica que não mate a árvore, no seu dizer, “para que ele viva”. A vida dele depende da vida da árvore. Sem ela, não conseguiria viver. Mas, o pai, indiferente e resoluto, corta a árvore com um machado bronco. O machado é qualificado como bronco para mostrar o quanto aquele ato era brutal e assassino. Quando a árvore caiu, o moço triste se abraçou ao tronco, caindo também. E assim como ela, nunca mais se levantou da terra, pois a ligação com aquela árvore era de um afeto inigualável.
Mas que estranha interferência tem uma árvore na vida de uma pessoa? Só se essa árvore não fosse for simplesmente uma árvore, mas uma alegoria para representar algo. Será? Dizem que árvore era Francisca, uma moça por quem Augusto dos Anjos fora apaixonado. Ela foi descrita como um “junquilho”, pois era apenas filha do vaqueiro da fazenda dos pais de Augusto. Mas a mãe do poeta, de família de estirpe, não aceitava a união dos dois. Pretendia um casamento melhor para seu filho. Casar-lhe com um alguém de sobrenome e sangue de “cedro”. O pai de Augusto era a favor do filho, daí a esperança deste em dirigir-lhe súplicas. No entanto, era um omisso, fazendo tudo que sua esposa desejava, por isso o destino fatídico da “árvore” não foi mudado. Não há pesquisas suficientes para atestar a veracidade biográfica desse caso, embora haja quem diga que na época, todos no recanto paraibano onde Augusto viveu conhecessem a história. Se esse idílio trágico tiver de fato acontecido, o poema envolve-se de uma luz que o torna mais compreensível e dramaticamente mais belo. Entende-se então porque o moço triste nunca mais se levantou: com uma perda tão grande, a morte de sua amada, ele sentia-se realmente morto. Mas se for apenas uma lorota, ela não retira a bela camada psicológica do poema, uma vez que existe uma insólita e intensa ligação entre o moço e a árvore.

Nota: os boatos que dão contam dessa namorada de Augusto e da morte premedita dela fazem parte de um ensaio de Soares Feitosa, publicado no Jornal de Poesia, Ensaio que, recomendo a todos os fãs de Augusto dos Anjos.

Belinha. (autora do blog Estação da Palavra)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

TRABALHANDO FILMES NA SALA DE AULA: "VERÔNICA"

FILME: VERÔNICA
Duração: 87 minutos
Ano: 2009

Andreia Beltrão faz o papel de Verônica, uma professora de escola pública que, igual a muitas de sua profissão, ganha pouco, sonha em acertar na loteria, enfrenta uma sala de aula lotada de crianças barulhentas e, apesar disso tudo, procura fazer o melhor que pode em seu trabalho. Mora sozinha num quartinho apertado, tem uma mãe doente e enfrenta um processo de separação. Uma vida nada fácil, porém bem previsível, até que um dia um simples favor que ela presta a uma colega de trabalho irá mudar sua rotina para sempre. Ela não imaginava que deixar um de seus alunos na casa dele iria causar tanto rebuliço. A partir desse dia, ela precisaria se esconder dos traficantes para salvar o garotinho que ficara repentinamente órfão e não tinha para onde ir.
O filme traz cenas de bastante tensão como quando Verônica corre com o garoto para tentar se esconder dos bandidos. Traz também momentos de muita ternura, como quando ela decide adotar o menino. O envolvimento dos policiais com o tráfico é a realidade retratada no filme, que também se preocupou em mostrar que ainda existem policiais isentos de corrupção. O filme, no todo, é agradável de se vê não só pela correria de Verônica sob estampidos de tiros, como pelo perfil de mulher estampado __corajosa, guerreira, cheia de caráter e pela tocante mudança nos corações dos personagens (Verônica e seu aluno), que  constroem uma sólida relação de afeto em meio ao drama que vivenciam.     

( Sinopse do filme: Belinha, autora do blog Estaçãodapalavra)

Exemplo de atividades sobre o filme Verônica

I.                   Organização do roteiro:

01.  Relacione às cenas à devida organização dos fatos:
( 1 ) Situação inicial de ausência de conflito.
( 2 ) Cria-se uma expectativa para as personagens.
( 3 ) Quebra da expectativa.
( 4 ) Explode o conflito.
( 5) Busca a solução do conflito.
( 6) Clímax (auge da tensão)
( 7 ) Solução do conflito.

Verônica:
(    ) foge dos traficantes.
(    ) dá aulas e reclama da vida.
(    ) enfrenta seus adversários face a face.
(    ) procura a ajuda de pessoas como o ex-marido, Celma, uma amiga de escola.
(    ) consegue fugir para fora da cidade com a criança com a ajuda do ex-marido.
(    ) ao tentar deixar o garoto em casa, descobre que os pais dele foram assassinados.
(   ) Leandro ganha um pen-drive seus pais são mortos e ninguém aparece para buscá-lo na escola.

II.                Compreensão do filme:

02.  Como Verônica é caracterizada?

03.  Que objeto funciona como o fio condutor da história?

04.  O filme é composto de vários picos de tensão. Cite três momentos desses.

05.   O encadeamento de ações acarreta transformações nos personagens. Que mudança ocorreu nos planos de vida de Verônica?

IV. Interpretação dos dados do filme.

06.  O pai de Leandro previa ser morto. Quais as causas da morte no tráfico de drogas? E como combater o tráfico?

07.  O filme denuncia muitas questões sociais. Cite algumas dessas questões.

08.  A escolha do local nunca é por acaso. Por que a história se passa no RJ?

V. Intertextualidade:

09.  O que chama atenção no filme é seu poder de verossimilhança (de parecer possível a história acontecer). Nesse aspecto, diferencia-se do romantismo, no qual tudo é idealizado. No entanto, Verônica tem algo em comum com as heroínas românticas? O quê?

VI. Produção textual.

10. Escolha uma cena do filme e descreva-a de forma envolvente.

domingo, 29 de janeiro de 2012

DEMOCRATIZANDO O ACESSO À LEITURA

O que fazer com aqueles livros que você já leu e não deseja mais guardar?

Nem sempre é possível doar para uma biblioteca pública. Pelo menos aqui em minha cidade, a Biblioteca Municipal está desativada por conta do velho descaso com a educação. Muita gente pode querer e até precisar de seus livros, mas você não sabe exatamente quem são e onde estão essas pessoas. Uma alternativa é cadastrar-se em um site de trocas de livros. Nele, você não apenas vai ajudar quem precisa, como vai beneficiar-se também, pois poderá solicitar um livro o qual também esteja desejando ter. Muita gente se queixa da falta de qualidade na educação, mas poucos fazem realmente algo para melhorá-la. Sim, você pode contribuir! Não precisa dar aulas particulares, visitar escolas, ser voluntário em nada (mas se quiser, nada contra, vá fundo), basta dar um chega para lá no egoísmo e procurar em sua biblioteca aquilo que você pode desfazer-se sem choramingar. O troca-troca de livros é uma ação inteligente, solidária e ecologicamente correta. Uma dica de site de trocas é o www.livralivro.com.br, mas procurando no google, vai achar outros.

Veja a descrição do site feita pela equipe do mesmo:  

Objetivo
O www.livralivro.com.br é um projeto destinado a fomentar a troca de livros entre a população.
Idealizador
O projeto foi idealizado e é mantido por Samur Araujo, mestre em Web Semântica pela PUC-Rio.
É uma iniciativa independente e gratuita. Nem por isso é menos importante! Se todos fizerem a sua parte, faremos do Brasil um país melhor.
Motivações
O projeto surgiu da necessidade de trocar um livro. Logo imaginei a possibilidade de desenvolver um web site para intermediar troca de livros entre pessoas.
Por atuar na área de desenvolvimento de sistemas para internet e estar cursando mestrado na PUC-Rio na mesma área, não tive dúvida que seria um projeto que poderia atender todas as minhas necessidades: trocar meus livros e aplicar meus conhecimentos adquiridos no mestrado.

Acredito que o projeto permitirá as pessoas terem mais acesso aos livros. Nem todos possuem uma biblioteca a seu alcance, e adquirir um livro novo é oneroso para os mais jovens.

O Livra Livro facilitará a aquisição de um novo livro dado que o único custo envolvido na troca é o custo de postagem nos Correios, que vária de R$ 3,00 à R$ 8,00 (de acordo com o peso) para enviar um livro para todo o Brasil.

Como Funciona?
É simples!
1. Você monta uma lista de livros que possui para trocar e outra dos que gostaria de obter.
2. Quando um usuário solicitar um dos seus livros, você o envia pelo correio.
3. O livro sendo recebido, você ganha 1 ponto para solicitar 1 outro livro.

Cadastre-se e descubra como é fácil trocar um livro.
Equipe LivraLivro.com.br

sábado, 28 de janeiro de 2012

“Entrevista” com Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno.

Perguntas feitas por Belinha, autora do blog Estação da Palavra. As respostas consistem em versos atribuídos a Gregório de Matos.


Apesar de criticar o clero católico você ainda se confessa. Esclareça.
Gregório: Sempre que vou confessar-me, digo, que deixo o pecado; porém torno ao mau estado, em que é certo o condenar-me.

Acha que vai responder por seus pecados?
Gregório: Pagarei num vivo arder de tormentos repetidos sacrilégios cometidos contra quem me deu o ser.

Desculpe a indiscrição, mas que pecados tão graves o senhor cometeu?
Gregório: Várias juras cometi, missa inteira nunca ouvi, a meus Pais não obedeço; matar alguns apeteço, luxurioso pequei, bens do próximo furtei, falsos levantei às claras, desejei mulheres raras, cousas de outrem cobicei.

Então você considera a religião importante para o homem?
Gregório: Quem da religiosa vida não se namora, e agrada, já tem a alma danada, e a graça de Deus perdida.

O que você acha da Bahia?
Gregório: De dous ff se compõe esta cidade a meu ver um furtar, outro foder.

Mas qual o problema da Bahia? O que lhe falta?
Gregório:
Que falta nesta cidade? ....Verdade.
Que mais por sua desonra ....Honra.
Falta mais que se lhe ponha...Vergonha.

Mas a Bahia é uma cidade muito famosa, exaltada por muita gente....
Gregório: O demo a viver se exponha, por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha.

Espera aí, mas a Bahia não é a única cidade com vícios e problemas...
Gregório: Não há nem pode haver desde o Sul ao Norte frio cidade com mais maldades, nem província com mais vícios.

Imagino que você ama a Bahia, então você sente então tristeza pelo estado em que ela se encontra?
Gregório: Que homem pode haver tão paciente, que vendo o triste estado da Bahia, não chore, não suspire, e não lamente?

Por que você fala mal dos frades?
Gregório: As lidas todas de um Frade são Freiras, Sermões e Putas.

E o poder judiciário? Qual o problema da Justiça?
Gregório: Anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta.

Você também critica os fidalgos.
Gregório: No Brasil a fidalguia no bom sangue nunca está, nem no bom procedimento, pois logo em que pode estar? Consiste em muito dinheiro, e consiste em o guardar, cada um o guarde bem, para ter que gastar mal. Consiste em dá-los a maganos, que o saibam lisonjear, dizendo que é descendente da casa do Vila Real.

E os judeus, os chamados cristãos novos?
Gregório: Quantos com capa cristã professam o judaísmo, mostrando hipocritamente devoção à lei de Cristo!

Ao que parece você também se ressente de sua terra pelo fato de os pseudoletrados serem tratados como doutores, sábios, entendidos e os que de fato têm talento são incompreendidos.
Queimada veja eu a terra, onde o torpe idiotismo chama aos entendidos néscios, aos néscios chama entendidos.

Como vê a relação entre os brasileiros e os portugueses?
Gregório: Os brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos de Portugal.

Você acredita que o ser humano é mau?
Gregório: Todos somos ruins, todos perversos, só nos distingue o vício, e a virtude, de que uns são comensais, outros adversos.

E os piores são os que conseguem ficar mais ricos?
Gregório: Neste mundo é mais rico, o que mais rapa.

Mas há pessoas que não andam falando mal das outras...
Gregório: Quantos há, que os telhados têm vidrosos, e deixam de atirar sua pedrada de sua mesma telha receosos.

Também não é assim, eu, por exemplo, sou uma pessoa ilibada.
Gregório: Quem mais limpo se faz tem mais carepa.

Dizem que você desdenha até do nariz do governador Câmara Coutinho.
Gregório: Nariz de embono com tal sacada que entra na escada duas horas primeiro que seu dono.

Os calundus e os feitiços fazem parte da cultura negra. Você acha que devem ser valorizados?
O que sei, é que em tais danças Satanás anda metido.

Então você pretende continuar usando sua poesia para satirizar a tudo e a todos?
Gregório: Se souberas falar, também falaras, também satirizaras, se souberas, e se foras Poeta, poetizaras.

Você não tem medo de fazer sátiras a tanta gente?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa preguejadora. Entendeis-me agora?

E para finalizar, quem é Gregório de Matos Guerra?
Gregório: Eu sou aquele, que os passados anos cantei na minha lira maldizente torpezas do Brasil, vícios, e enganos.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Beth Goulart fala de Clarice Lispector no Jô

Jô Soares entrevista Beth Goulart - 16/09/2010

Trecho no qual  Beth fala sobre Clarice Lispector.  

Jô: E a Clarice, como pintou na sua vida?

Beth: A Clarice tá na minha vida desde a adolescência. Eu sou admiradora profunda de Clarice. E ela veio me acompanhando, e eu a ela durante muito tempo, até que um determinado momento eu falei "ah, eu queria fazer alguma sobre ela". Eu li um livro muito interessante. Era a correspondência da Clarice Lispector com o Fernando Sabino, Cartas do coração, nao sei se você já leu esse livro.

Jô: não, não li não.

Beth: Quando eu li, eu disse, nossa, daria um espetáculo tão bonito, tão bacana, dois autores tão interesantes, tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão ... (procurando a palavra) interessantes. Aí quis fazer uma adaptação deste trabalho, deste livro. Ali eu comecei a ver a Clarice como personagem. Porque até então eu não sabia exatamente o que eu queria fazer da Clarice. Sabia que alguma coisa em algum momento eu iria fazer. mas não sabia exatamente o que. E ai falei não, dá um espetáculo interessante. Comecei a trabalhar, pesquisar, a estudar sobre isso. Durante o processo não foi possível fazer esse trabalho mas ali eu vislumbrei a Clarice como personagem e ali eu assumi um compromisso de certa maneira com ela. De poder chegar um pouquinho perto dela, trazê-la um pouco pro teatro, pra chegar perto das pessoas, criar uma ponte humana entre ela, sua obra e o público. As pessoas acham que a Clarice é uma coisa meio inatingível, né, uma áurea de mistério. Muita gente (fala): ‘ai mas ela tão difícil’ e eu não achava. Nunca achei ela difícil.

Jô: não, difícil não, é porque ela se transformou num mito, inclusive porque você falou em Fernando Sabino; é toda uma geração que ficou fascinada pela Clarice. Aliás, inclusive no sentido de ela ser mulher e escrever como homem. Antigamente tinha muito isso.

Beth: você sabe que Clarice é a escritora com mais teses pelo mundo. Então o mundo inteiro fica interessado em conhecer Clarice.

Jô:  E eu acho que isso, que é uma coisa quase que machista, todos eles se identificavam com a maneira de escrever dela. O que não era exclusividade deles, porque todo o mundo, o mundo inteiro tem fascínio pela Clarice. Eu entrevistei aqui uma cantora americana  que fala português (cita o nome) e ela falou que uma das primeiras leituras dela em português era Clarice. Então é um fascínio mundial.

Beth: Ela realmente é fascinante mesmo.

Jô: Como é a história do sotaque?

Beth: Ah, é engraçado. Muita gente acha que ela tem um sotaque estrangeiro, mas na verdade o sotaque da Clarice é do nordeste, né, do Recife. Ela tem uma cantada, um jeito de falar assim meio cantadinho, né. (Começa a imitar o sotaque de Clarice) Vai falando assim, só que quando você coloca a língua presa, parece de um outro lugar, quase um outro país. Na verdade não é. É nordestino.

Jô: Nordestino com a língua presa. Fala um trechinho pra gente.

Beth: Ela fala assim: "Escrevo porque encontro nisso um prazer, que não sei traduzir. Não sou pretensiosa." É uma coisa meio assim.

Jô: Uma entonação meio francesa.

Beth: É uma cantadinha. Mas cantadinha, que é bonitinha, é uma cantadinha nordestina. O r é que da essa misturadinha que parece de outro país.

Jô: Até que ponto influencia na vida da Clarice o fato de ela uma mulher bonita, uma mulher interessante?

Beth: Ah, eu acho que influencia muito, ela era muito vaidosa. Toda mulher vaidosa, assim..(sic)  tem um momento do espetáculo que eu faço uma entrevista que ela diz assim, ‘ah a minha vaidade não é literária não, eu não ligo, mas eu gosto que me achem bonita’. Isso, toda mulher de certa maneira tem esse prazer.

Jô: Claro, né, evidente. E quando você começa elogiando a beleza, falam  ‘não, mas não é só isso’. 

Beth: É (sorrindo).

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Assista a entrevista no you tube.

Autora do blog: Belinha.

domingo, 22 de janeiro de 2012

SARAMINDA: O ROMANCE SENSUAL DE JOSÉ SARNEY



A maioria das pessoas lembra imediatamente de política quando se fala no nome de José Sarney. Mas além de figura pública, Sarney tem cadeira na ABL e vale a pena conhecer um pouco algumas de suas dezenas de obras. Saraminda, por exemplo, é um romance ambientado no garimpo de Caiena. A personagem-título, com seus seios amarelos e olhos verdes, destila sensualidade e atitude. Mulher de Cleto Bonfim, o rei do garimpo, ela era prostituta quando ele a arrematou  num leilão por 10 quilos de ouro. Regras morais não dizem muito para essa fogosa mulher que subjuga os homens diante de sua beleza e ousadia.
Mas não se pense que Saraminda era uma devassa ou ninfomaníaca. Ela não buscava necessariamente sexo, mas sujeitar os homens à sua vontade, “brincar com eles”. Ela mesma explica:
“Os homens são fáceis. A caça mais certa de apanhar. Eu brincava com eles, sabia a arte de seduzi-los, levá-los ao desejo insaciável, mas não me entregava. Não me dava vontade de me entregar. Eu queria sempre que eles tentassem de novo. Eram sujos, tinham cheiro de trabalho e pingavam ouro. Minha fidelidade a Cleto era não querer deitar com outros homens, mas eu fazia mais. Eu brincava com eles como com as bonecas. Eu tinha o prazer de me mostrar, o segredo deles me verem nua e fecharem os olhos com medo”.
O prazer de Saraminda era atiçar o desejo dos homens, enlouquecê-los. E mostrar sua nudez era uma de suas provocações prediletas, como no episódio em que manda chamar Celestino, o capaz de seu marido:
__ Celestino, mandei chamar você para que me visse, me olhasse, porque você sempre está me olhando com vontade de me ver.
__ Saraminda, não faça isso comigo, não posso trair Cleto. Por que você me escolheu para isso, menina?
Quando ele falou ‘menina’, sentiu que a palavra revelava um sentimento oculto de ternura que podia ser a barreira a transpor contra sua lealdade.
E ela pediu:
__ Me beija Celestino.
E Celestino fraquejou, beijou-a. Sentiu um gosto de veneno e saiu correndo, mas não passou da varanda, contido pelo rosnar forte de Leão, que ele rapidamente entendeu. Desse dia ele não esqueceria nunca. Ficou com raiva, amor e ciúme.
__ Leão, deixa ele sair e vem cá.
O cachorro afastou-se e Celestino seguiu o seu caminho. Não dormia mais, não pensava mais no trabalho, nem no ouro, só pensava no corpo de Saraminda.
Banhos de Saraminda no rio, sua paixão por um francês, cães estraçalhando um homem, o apogeu e decadência do garimpo, suicídio, enfim, muitas emoções perpassam o romance. A leitura de Saraminda flui de forma rápida e natural como as águas de uma correnteza. Lembra um pouco Gabriela, de Jorge Amado, mas ao contrário do combativo escritor baiano, Sarney evita assuntos políticos, até por imperativos lógicos. O romance é focado nas descrições poéticas e na fabulação regionalista, atentamente pesquisada por Sarney.
Como já vai longe a época da literatura de heróis ou mocinhos, os personagens tem seus pecados e infâmias expostos. Veja como a empregada de Saraminda descreve seus patrões:
__ Eu vim pra cá trazida por seu Bonfim. Trabalhava com ele. Quando Dona Saraminda ficou sua mulher de casa, amasiada, ele me trouxe para serviço dela. No princípio me fez mulher dele, quando chegava embriagado. Depois não me quis mais. Saraminda gostou do meu trabalho e me tem no seu serviço. Prometeu me dar uma casa em Caiena e um quilo de ouro. Mas é mulher viciosa. Nunca vi coisa assim. É de dia e de noite. Todo homem que olha quer agarrar. Mas não deita de logo, se torna difícil, eles ficam doidos e bestas como ficou seu Bonfim. Faz assim porque é fêmea diferente, basta olhar seus peitos. Se fosse como nós, já tinha apanhado muito.
Observe-se que ela diz que Saraminda é uma fêmea diferente. Através de detalhes como esse, é possível perceber que o autor de Saraminda não conseguiu fugir dos exageros da construção de uma imagem estereotipada de fêmea fatal. Segundo a Wikipédia, “ mulher fatal” ou femme fatale é o estereótipo da “mulher que seduz e engana o herói e outros homens para obter algo que eles não dariam livremente” (...) “ O  homem se torna obcecado, viciado e exausto, e incapaz de tomar decisões pessoais ou gerenciar sua própria vida pessoal”.  Assim como na música “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Amelinha, Saraminda consegue transformar Cleto em seu joguete, com sua malemolência e seu jogo erótico aparentemente despretencioso. Oferece a ele prazer, ciúme e dor. 
A intenção do romance é que o leitor, assim como Cleto e os demais homens, também se renda a essa mulher, que apesar de não ser a pioneira da sensualidade de nossas Letras e dos detalhes às vezes óbvios, tem potencial para figurar como mais um grande ícone na galeria de personagens femininas de nosso país.

sábado, 21 de janeiro de 2012

AH, QUE SAUDADE DE NELSON RODRIGUES....

Sobre Nelson Rodrigues:

" Você está com saúde de vaca premiada". (Otto Lara Resende para Nelson Rodrigues, após este sair de quinze dias de coma)

" Criar era a razão principal de sua vida". (Cid Moreira, no Jornal Nacional, sobre Nelson Rodrigues)

" Ele é muito puro, ele é muito bom. E por isso mesmo ele é fundamental na formação de qualquer ator. Na formação de qualquer pessoa ligada ao teatro". (Fernanda Montenegro)

" O Nelson Rodrigues foi pra mim, até hoje, duas pessoas: um grande farsante e um grande trágico, verdadeiramente trágico e verdadeiramente farsante. E essas duas pessoas conviviam e se davam muito bem". (Cláudio Melo e Souza - jornalista e escritor)

" Ele era uma ator de si mesmo. Ele interpretava um personagem. Esse personagem era o contestador por excelência. O que tinha horror do aplauso e, no entanto, precisava que desesperadamente o aplaudissem" .  (Cláudio Melo e Souza - jornalista e escritor)

" A primeira peça dele estreada no Municipal foi recebida com indiferença pelo público e pela crítica. Quando ele percebeu que invés de aplausos, tinha conseguido apenas bocejos, ele foi pra casa furioso e em uma semana escreveu Vestido de Noiva" .  (Cláudio Melo e Souza - jornalista e escritor)

" O Nelson trouxe essa brasilidade para o palco, mas uma brasilidade não de caricatura, não de fazer o caipira ou coisa assim, mas a ideia de ser brasileiro" . ( Barbara Heliodora, crítica de teatro)

" Nelson, você deve ter errado. A peça não faz sentido. Não estou entendendo nada". (Sua esposa Elza, sobre a peça Vestido de noiva)

"Esse rapaz, o Nelson, tem um grande talento. A peça é formidável". (Manuel Bandeira, sobre a peça “A mulher sem pecados”).

"Li duas vezes. Achei mais interessante do que ‘A mulher sem pecado’. O que me agrada na peça é que não tem literatice". (Manuel Bandeira, sobre a peça ‘Vestido de noiva’)

"Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação". (Manuel Bandeira)

"Caio de quatro e pasto". (Paulo Mendes Campos, elogiando as peças de Nelson Rodrigues)

Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues:

"A úlcera deu-lhe duas outras coisas com as quais ele iria conviver: os analgésicos, que passou a tomar em quantidades industriais (quatro ou  cinco comprimidos de “Melhoral” por dia), sem saber que eles lhe irritavam ainda mais a úlcera __ e os suspensórios. No começo, tinha pudor deles, tanto que os escondia sob suéteres, fizesse frio ou calor. Depois conformou-se. Segurar as calças com o cinto provocava-lhe dor quase intolerável na região da úlcera".

“A ciranda de mortes em suas histórias fazia com que se dissesse, por exemplo, que ele dormia num caixão de defunto, que tirava sonecas entre quatro círios. Essas pessoas ficariam desapontadas se o vissem na intimidade: em casa, de pijama, às nove da noite, ouvindo discos de frevos pela Banda do Corpo de Bombeiros e indo dormir numa vulgar cama Drago com colchão de molas. Da qual só se levantava, no meio da madrugada, para aplacar os pinotes da úlcera com a papa de purê de batata e carne moída”.

FRASES DE NELSON RODRIGUES:


A propósito de aniversário, eu sou uma múmia, me considero uma múmia com todos os achados da múmia. Há uma convivência entre a minha velhice de forma formidável. (Nelson Rodrigues)

Eu acho que o jovem só pode ser levado a sério quando fica velho. (Nelson Rodrigues)

O único líder juvenil que eu conheço é o Mao-tsé-Tung. (Nelson Rodrigues)

Aos dezoito anos, o sujeito não sabe como se diz a uma mulher boa noite. (Nelson Rodrigues)

Eu era de uma ignorância enciclopédica, em matéria de amor e de tudo o mais. (Nelson Rodrigues)

O nosso querido Otto Lara Resende disse que o homem é triste porque morre. Eu digo não, o homem é triste porque vive. (Nelson Rodrigues)

Eu tenho a maior admiração pelo homem fiel. Eu acho que o homem e a mulher deviam ser fieis. Toda vez que alguém trai alguém, há um choque no universo. (Nelson Rodrigues)

Eu sou velho com os todos os achaques da velhice. (Nelson Rodrigues)

Não acredito no ateu autêntico. (Nelson Rodrigues)

Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava. (Nelson)

Que Brasil formidável seria o Brasil se o brasileiro gostasse do brasileiro. (Nelson)

Todo o desejo, como tal, se frustra com a posse. A única coisa que dura para além da vida e da morte é o amor. (Nelson)

Se a carrocinha leva cachorro, por que não leva crítico? (Nelson Rodrigues)

É mulher? (pergunta que Nelson fazia toda vez que o telefone tocava para ele)

Eu vou a São Paulo dar um tapa nas ancas do Oswald de Andrade. (Nelson sobre as críticas que Oswald de Andrade  publicava a seu respeito)

Nunca na minha vida dei um cascudo nos meus filhos. Sou rigorosamente contra pancada na educação. (em entrevista)

O amor é sincero até quando mente.

Acredito que a maior tragédia do homem ocorreu quando ele separou o amor do sexo. A partir de então, o ser humano passou a fazer muito sexo e nenhum amor.

Se todos me vaiarem se só você me aplaudir, ainda assim, eu me sentirei como um Napoleão coroado. (Nelson, apaixonado, declarando-se a Ana Lúcia, que era casada)

Não ando em comissão, nem em manifesto, nem em maioria, nem em unanimidade. (Nelson dando sua opinião sobre a responsabilidade de resistência em relação aos militares)



sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O PODER DAS PALAVRAS

O título deste blog é “Estação da palavra”. Minha intenção era que se chamasse “Estação das palavras”, mas já havia um blog com esse nome. Tudo bem, eu queria, na verdade, qualquer coisa que contivesse o vocábulo “palavra”, pois é disso que o blog trata __ literatura, poesia, gramática, linguagem. Pensando nisso, fiquei contemplativa: as palavras têm poder, não conseguimos viver sem elas, pois fazem parte da gente e estamos sempre nos articulando entre dois movimentos: nos exprimir e compreender o discurso do outro. Mas qual seria o tal poder das palavras?
Em minhas pesquisas, encontrei o pai da psicanálise refletindo sobre esse tema. Em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”, Freud reconhece o poder das palavras: por meio de palavras, uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero; por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos; por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia seus julgamentos e decisões. Palavras despertam afetos e são o meio universal de os homens influenciarem uns aos outros. Freud usava a linguagem como ferramenta libertadora de repressões. Por meio da fala, o paciente deixava fluir reminiscências psíquicas de modo que seus traumas vinham à tona e podiam ser encarados.
Até a Bíblia reconhece o poder das palavras. O livro de provérbios esclarece: “uma resposta branda aplaca o furor, uma palavra dura excita a cólera” (Prov-15-1).  O profeta Natã pôs esse provérbio estrategicamente à risca para conscientizar o rei Davi sobre seu pecado com a mulher de Urias.  Para conseguir convencer o rei do seu mau proceder, Natã narrou uma comovente historinha que envolveu emocionalmente o rei. Indignado com o personagem mau, Davi o decretou como digno de morte: “Pela vida do senhor! O homem que fez isso merece a morte. Ele pagará quatro vezes a ovelha por ter feito uma coisa destas, sem ter pena.”  Natã triunfante desfechou a catarse dramática: “Este homem és tu...!”. O rei Davi havia sido vítima de uma alegoria de aparência singela, porém persuasivamente contada. Natã conseguiu assim acusar o rei, sem perder o próprio pescoço. 
O poder encantatório das palavras é também o que salva Scheerazade, em As Mil e uma Noites. Toda noite ela contava histórias que acendiam a imaginação do seu ouvinte, que poupava-lhe a vida para que aquelas histórias continuassem desfilando em sua imaginação.
Nem sempre é verdadeiro o provérbio que diz que meia palavra basta. Às vezes uma palavra é usada para esconder outras, maquiando, omitindo ou dissimulando uma realidade. É o que acontece quando um político é pego em flagrante em situação de improbidade: ele se defende negando ou minimizando o fato de uma forma que acaba “saindo pela tangente”.         
Usar as palavras para confundir não é tão difícil, visto a própria natureza da linguagem humana. Segundo o linguista Ferdinand Saussure, os signos (palavras) são arbitrários, ou seja, não passam de uma invenção humana usada para viabilizar a comunicação. Sendo assim, a palavra possui grande teor de ambiguidade natural. Por isso, a frase “está frio aqui”, pode está informando a temperatura ou pode ser um pedido para alguém fechar a janela.
Escritores como Machado de Assis, usavam a ambiguidade da linguagem para criar histórias que deixavam os leitores na missão de descobrir o que estava por trás das atitudes dos personagens. Ao descrever o olhar de uma personagem, Machado não pintava apenas sua aparência, entremostrava detalhes cruciais para o entendimento do comportamento dela.
Em advocacia, sabe-se o poder que uma palavra pode ter para o desfecho de um processo. Da mesma forma que uma roupa confere a uma pessoa uma imagem positiva ou negativa, a forma como uma pessoa apresenta-se ou é apresentada por seu advogado é capaz de construir um perfil de aparente inocência ou de aparente perfídia.
Não é à toa que em uma entrevista de emprego as pessoas costumam ficar nervosas. Serão julgadas com base naquilo que falarem e na forma como usarem suas palavras. Basta abrir a boca e já será possível medir-lhes o grau de instrução, deduzir-lhe a origem geográfica e conhecer uma pouco de sua personalidade e estado emocional em que se encontram.
Aliás, ninguém quer trabalhar ao lado de pessoas que vivem reclamando da vida e propagando frases de medo e insegurança. A cada dia aumenta o filão dos livros e conferências de autoajuda destinados aos que procuram soluções para aumentar suas vendas, conseguir promoções no serviço ou simplesmente atrair bons fluidos em sua vida. E é através da força das palavras que esses autores tentam mostrar a seus interlocutores como mudar o foco dos pensamentos, superar os obstáculos, dá vazão ao seu processo criativo, enfim, direcionar a energia para as coisas desejáveis.
O apropriado manuseio das palavras não está restrito a um determinado segmento social. Qualquer aluno de cursinho sabe que por mais que consiga destrinchar os mais árduos problemas de matemática não conseguirá ser aprovado a menos que desenvolva uma boa prova de redação. Na modalidade escrita, sua linguagem verbal será mais exigida, qualquer infração à gramática, que na oralidade é automaticamente relevada, na folha de papel torna-se um pequeno entrave rumo à escrita de um texto coeso e coerente.
Mas as palavras guardam grandes mistérios, nenhuma gramática consegue aprisioná-las. Por isso, um repentista encanta seu público; pela espontaneidade de sua fala e pelo aspecto cômico das histórias que inventa. Da mesma forma, uma gíria ou um simples bordão criado na internet ou nas novelas conseguem se disseminar como praga no milharal e chamam atenção a cada vez que são pronunciados.
É na seara da poesia, entretanto, que o fascínio das palavras emerge poderosamente. No poema “O lutador”, Carlos Drummond de Andrade revela que luta com palavras e tenta enlaçá-las, capturando sua magia, viço e esplendor. Nessa luta, nem sempre consegue a vitória almejada, mas não é capaz de fugir desse embate, está viciado nesse duelo diário que consiste em tentar apanhá-las, no seu dizer, “acariciá-las”, provar sua essência, sentir-lhes a textura sonora, o travo peculiar que as envolve.
Podemos dizer a Drummond que o leitor também se sente dominado pela dimensão poética das palavras pois é chamado a sonhar, a cavalgar por universos oníricos que somente a fantasia é capaz de edificar. Nessa hora, a palavra se despe de sua função informativa e lógica e conduz ao devaneio saudável, aquele que permite viajar nos limites dos sentidos, abandonando-se às sensações, sem contudo, soltar as amarras da lucidez.
A palavra tem poder criador e o próprio pensamento é tecido por elas. Segundo a Bíblia, Deus criou o mundo pela palavra. Ela teria sido o abre-te Sésamo divino para trazer as coisas à existência. Pela palavra, os mitos são repassados, o cientista promove suas teses e a História da humanidade é trançada para a posteridade.  A criança somente cruza o mundo natural e adentra verdadeiramente no mundo humano, formado por símbolos e/ou signos, quando aprende a falar e, no caso da cultura contemporânea, com o devido processo de letramento.
As palavras manejadas de forma inteligível e elegante fornecem status aos seus emissores e podem permitir um trânsito social mais desembaraçado. É isso que é possível notar em Vidas secas, de Graciliano Ramos. Nesse romance, o autor alagoano concebe Fabiano, um personagem que teve sua capacidade comunicativa cerceada pela miséria e pelo ambiente rude. Devido a essa limitação, não apenas seu potencial de expressão ficou comprometido, como também sua capacidade de demonstrar afeto. Assim, o relacionamento entre ele, sua esposa e seus filhos era mantido mais à base de gestos e muxoxos, ficando os sentimentos presos, tolhidos, o que sem dúvida, tornava suas vidas tão secas quanto o solo pedregoso em que viviam.
Clarice Lispector é outra escritora que usa metalinguagem como temática e força motriz de sua obra. Para ela, as palavras não bastam para alcançar o que deseja: ela aspira ao inexprimível. Mas até para isso, é forçoso usar as palavras. E ela as exercita com tanta maestria que seu discurso sedutor é, e sempre será, objeto de inúmeros estudos interpretativos. Assim como Clarice, inúmeros outros artistas da palavra vêm se debruçando sobre a própria linguagem a fim de extrair-lhe sua mais alta carga de densidade evocatória. Não estão buscando um enfeite textual, estão criando linguagem apaixonada, capaz de despertar sensibilidades, iluminar olhares, instigar emoções.

E por falar em palavras, leia a seguir, o texto O vendedor de palavras, de Fábio Reynol.

Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma ideia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.

Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".

Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinquenta curiosos parasse e perguntasse.

— O que o senhor está vendendo?

— Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinquenta centavos como diz a placa.

— O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.

— O senhor sabe o significado de histriônico?

— Não.

— Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.

— Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.

— O senhor tem dicionário em casa?

— Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.

— O senhor estava indo à biblioteca?

— Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.

— Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinquenta centavos de real!

— Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?

— Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.

— O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?

— O senhor conhece Nélida Piñon?

— Não.

— É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.

— E por que o senhor não vende livros?

— Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.

— E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.

— A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.

— O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...

— Jactância.

— Pegar um livro velho...

— Alfarrábio.

— O senhor me interrompe!

— Profaço.

— Está me enrolando, não é?

— Tergiversando.

— Quanta lenga-lenga...

— Ambages.

— Ambages?

— Pode ser também evasivas.

— Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!

— Pusilânime.

— O senhor é engraçadinho, não?

— Finalmente chegamos: histriônico!

— Adeus.

— Ei! Vai embora sem pagar?

— Tome seus cinquenta centavos.

— São três reais e cinquenta.

— Como é?

— Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.

— Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?

— É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?

— Tem troco para cinco?

E-Mail: freynol@gmail.com